A realidade do mundo pós-guerra fria veio mostrar que a tensão bélica existente no Planeta não era consequência de uma confrontação mundial, nem tão pouco de uma luta universal de classes. Tanto no capítulo das guerras de libertação anti-coloniais como em muitas situações de conflitos internos pela conquista do Estado, a divergência entre blocos não era a causadora dos conflitos, mas antes a introdutora de aproveitamentos oportunistas que frequentemente agravavam uma situação de conflito e em nada contribuíram para a Paz mundial.
Hoje, o conflito como regulador de relações insuportáveis continua na ordem do dia em muitas zonas do Globo, sendo, como tal, o grande responsável por situações de fome, miséria generalizada e atraso. Daí que se torne importante analisar o fenómeno conflitual em si numa perspectiva isenta de partidarismos ou vontade de poder, portanto fora da tradicional acusação contra estes ou aqueles fautores do mal com a inerente ideia de que, desaparecidos estes ou aqueles, a Paz Perpétua imperaria neste nosso conges-tionado e engarrafado planeta.
Os conflitos actuais tendem a ser muito pouco uma consequência de divergências entre estados soberanos em que as populações são levadas ao conflito pela disciplina imposta pelo Estado com a mobilização de jovens para a guerra e demais cidadãos para o esforço de guerra, sem que a sua vontade se tenha expresso de alguma forma.
Duas ordens de conflitos imperam em várias zonas do Mundo; as que resultam do desejo de libertação de povos relativamente a poderes com os quais não se identificam e os que têm a ver com a conquista do Estado. Em todos os conflitos, há sempre a procura de processos de identificação colectiva como forma de mobilização de massas. Identificação etno-religiosa, identificação em termos de classes, vulgo consciência de classes. Nós contra os outros, eles, os maus.
A identificação surge aqui como resultado da diferença o que pressupõe uma interacção social. A identidade colectiva não deixa de ser uma relação social, tanto como é um esquema mental. Mas, sendo-o, nem sempre é decisiva a sua existência como factor de conflito. Veja-se o caso da Jugoslávia, onde se podia ser etnicamente ambíguo até ao aparecimento da democracia e surgimento dos conflitos étnicos que vieram traçar as fronteiras entre sérvios e restantes grupos. Foi, sem dúvida, o desejo dos servos de monopolizar para si as forças armadas da Jugoslávia que criou as bases do conflito bélico, pois as restantes regiões correram a formarem forças militares próprias, nascidas sob o signo do conflito, fazendo as diversas guerras logo de princípio. Os oficiais croatas, por exemplo, quando expulsos das antigas forças armadas fundaram de imediato o seu exército nacional em luta com os antigos camaradas de armas. Assim, a identidade Sérvia foi-se transformando ao longo dos conflitos dos anos noventa no sentido de uma demarcação dos seus limites mais restrita e não tanto em consequência de uma processo interno, mas antes de uma opção semi-totalitária de um regime que jogou com a carta nacionalista como forma de se justificar no poder. E é interessante salientar que é precisamente no processo de formação e manutenção das fronteiras entre grupos como constituintes das “identidades colectivas” que reside o essencial do estudo sociológico do conflito como pesquisa de soluções de Paz.
As identidades preexistem, mas é o uso da força, a da lei ou a das armas, como estreitamento entre a política e grupo étnico que acentua as fronteiras sociais. Na ausência de violência ou força política, as fronteiras delimitadoras da identidade esbatem-se
Por si próprio, os povos tendem a cruzarem-se, a encontrar espaços de comunhão pacífica, mesmo quando praguejam diaria-mente contra os chamados outros. Por isso, não é tanto a identidade a causa dos conflitos, mas a soberania ou soberanias, nomeadamente a indivisibilidade da soberania. O principal problema da Humanidade em termos de conflito resultou sempre da instauração de políticas de não soberania para algumas populações, susceptíveis de cavarem fossos entre os detentores de soberania e os sujeitos não soberanos. Nos impérios coloniais e políticos, os povos não soberanos foram até muito recentemente considerados coisas, detendo os soberanos todo o poder, incluindo o resultante de actividades socioprofissionais normais como professorado, magistraturas, administração a todos os níveis, propriedade ou direcção empresarial, etc. Nestas circunstâncias, o desespero instala-se naqueles que estão desprovidos de poder e “status” social e o conflito surge. No caso do Kosovo, a população albanesa, que deteve antes poderes autónomos, viu-se privada desses poderes e de quase todas as possibilidades de ascensão social. Daí ter reagido com uma guerra de resistência.
De resto, também os conflitos entre Tutsis e Hutsos em África têm a mesma génese porque aí, como noutros locais, o poder político tenta reforçar-se com espantalhos etno-racistas ou socio-identitários como forma de alcançar o poder e nele permanecer o mais longamente possível.
A existência de riquezas em dadas regiões acentua frequentemente o processo de formação de identidade, tanto no aspecto de os próprios não quererem dividir as suas riquezas, como do facto de cobiças e interesses alheios jogarem a favor de um aumento da conflitualidade.
Os conflitos existentes actual-mente com tendência para se prolongarem no futuro são muitos e todos têm como base um processo de insuficiente ligação entre identidade e soberania, mas são também pejados de artificialismos diversos provocados por grupos políticos interessados no seu poder. Veja-se o caso da Irlanda do Norte, País Basco, Escócia, Catalunha, Córsega, Kosovo, Bosnia e Cáucaso. Na Ásia, o conflito do Pundjab opõe dois estados, a Índia e o Paquistão numa quase excepção à panorâmica conflitual da actualidade. O Tibete procura a soberania indivisa relativamente à China, como o conseguiu Timor e agora também o querem as ilhas Molucas. No Ruanda e no Congo vários grupos étnicos não se identificam com a soberania existente e na Palestina, as soluções encontradas vão ao encontro da problemática da indivisibilidade da soberania, mas de uma forma muito rudimentar, dada a extrema exiguidade dos territórios em causa e por a soberania assentar em processos de identidade aparentemente insusceptíveis de fusão. O poder aí é religioso e értnico pelo que não parece fácil encontrar uma soberania neutra que não se confronte com identidades diferenciadas.
A identidade de uma população pode ser sempre utilizada como instrumento base de conflitos armados. E o grave é que os processos de identidade podem ser criados e surgirem assim artificialmente como as diferenças entre norte e sul num dado país, entre a população da capital, tida como detentora privilegiado do poder, e a de outras cidades ou dos campos, para não falar na religião como pretenso fenómeno de identidade, como foi o caso do nazismo alemão que via na população judia uma raça diferente, quando na verdade os judeus eram tão europeus como os povos em cujo seio viviam há séculos ou milénios mesmo.
Não se pode ser pacifista e agitar neste mundo pós-colonial e pós-imperial com o espantalho de pretensas identidades não soberanas. Até porque qualquer grupo humano tem muitas identidades, tais como: geográficas, étnicas, religiosas, linguísticas, económicas, sociais e profissionais, etc.
A Paz deve ser estudada em função da raiz dos próprios conflitos entre povos ou populações, nomeadamente nesta perspectiva de identidade e soberania.
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